Primeiro capítulo
A FAMÍLIA JAROCZYK
Tomislaw Jaroczyk era um agricultor polonês de meia-idade, nascido e criado no interior da Polônia. Devido à rigorosa educação que recebera de seus pais, não era de muita conversa, mas tinha um coração generoso. Filho único, ainda jovem, herdou de seu pai uma propriedade com uma extensa área de terras, próxima à fronteira com a Ucrânia. A agricultura exigia trabalho duro, mas ele gostava da vida simples e tranquila que levava no campo, com poucas preocupações. Sempre foi muito religioso e agradecia a Deus, diariamente, pelo que recebia daquelas terras que ele tanto amava.
Antes de completar vinte anos, casou-se com Judyta, uma simpática professora, e com ela teve cinco filhos: três meninos e duas meninas. Ele não media esforços para garantir à esposa e aos filhos um padrão de vida bem acima do que a maioria dos poloneses tinha naquela época. Judyta era filha de uma família de muitas posses e estava acostumada com certas regalias, casada com ele, não podia perdê-las.
Ele sofrera uma grande tragédia e ainda carregava em seu coração a dor da perda de seus dois irmãos mais velhos, mortos nas batalhas da Primeira Guerra Mundial, um conflito que ocorreu entre os anos 1914 e 1918. Além de seus irmãos, outras vidas foram perdidas e muitos sonhos transformados em pesadelos intermináveis. Era difícil esquecer os acontecimentos daqueles anos sombrios, ainda assim, ele achava que tudo estava quase perfeito e não acreditava que uma nova desgraça estava prestes a acontecer e que mudaria, drasticamente, a vida dele e de todos os poloneses.
Na madrugada do dia primeiro de setembro de 1939, as tropas alemãs, comandadas por Adolf Hitler, invadiram a Polônia dando início à Segunda Guerra Mundial. Dias depois, a França e o Reino Unido declararam guerra à Alemanha, seguidos por outros países como os Estados Unidos, Japão, Rússia entre outras grandes nações. As batalhas foram levadas a um patamar jamais visto, sequer imaginado. A invasão alemã pegou os poloneses desprevenidos e eles não conseguiram resistir por muito tempo, foram obrigados a se render.
Tomislaw acompanhava, diariamente, as notícias e andava muito apreensivo com o avanço rápido dos soldados em solo polonês, sabia que a crueldade praticada contra o seu povo não tardaria chegar à sua família. A preocupação aumentava a cada dia que passava e em sua cabeça havia um só pensamento: proteger Judyta e seus filhos inocentes. Estava disposto a fazer qualquer coisa, inclusive fugir da Polônia para qualquer lugar do mundo onde pudessem viver com segurança e tranquilidade, longe da guerra. O importante era evitar que a família caísse nas mãos dos nazistas.
Quando a noite chegava, ele esperava a família adormecer e, em silêncio, saía de casa e esgueirava-se pelos campos e matas escuras para acompanhar o avanço das tropas alemãs. Passava horas observando a rotina dos soldados, principalmente daqueles que vigiavam a fronteira entre a Polônia e a Ucrânia. Uma cerca intransponível de arame farpado fora construída para demarcar a divisa entre os dois países e o único meio de fugir seria cruzando a fronteira. Os soldados eram muito bem treinados e tinham ordens para capturar quem tentasse deixar o país sem uma autorização do governo alemão.
Depois de muitas noites rastejando pelo chão árido e frio, ele já estava desanimado e sem esperança, não conseguia enxergar uma possibilidade de fuga. Prestes a desistir, disse a si mesmo:
— Esta é a última noite. É impossível fugir com uma família de sete pessoas.
A noite estava clara, iluminada pela lua cheia que brilhava no céu estrelado. Com uma lanterna a pilha, ele iluminou o velho relógio de bolso, presente de seu pai, e viu que eram quase vinte e duas horas. Antes de voltar para casa, resolveu se arriscar um pouco mais e chegar bem perto da guarita onde estavam os soldados vigiando a fronteira que separava a Polônia da Ucrânia. Como uma cobra, rastejou pelo chão e aproximou-se o mais perto que pôde, tomando cuidado para não ser descoberto, ficou deitado, em silêncio, sentindo as batidas fortes de seu coração, com medo de ser capturado.
Ao longe, avistou uma luz se aproximando da fronteira, chegou mais perto e viu que era um caminhão das tropas alemãs, o sangue gelou em suas veias. Dois soldados desembarcaram e fizeram uma reverência à bandeira alemã, que tremulava e anunciava que ali era território inimigo. Em seguida, prestaram continência aos outros quatro soldados, que já estavam ali, saudando Adolf Hitler, e iniciaram os procedimentos para a troca do turno. Eles pareciam robôs executando um roteiro de regras preestabelecidas pelo Alto Comando nazista.
Rapidamente, os quatro soldados, que deixaram o turno, embarcaram no caminhão e partiram, ficaram apenas os dois que haviam chegado, como vigias da madrugada. Assim que o veículo desapareceu na escuridão, os dois soldados deram uma rápida olhada em volta e depois se recolheram em uma tenda do exército, erguida ao lado da guarita, para se protegerem do frio intenso.
Tomislaw também observou que àquela hora da noite quase ninguém passava por ali e os soldados relaxavam na vigilância deixando a fronteira desprotegida. Ele sentiu um calafrio percorrer sua espinha quando se deu conta que bem à sua frente estava a resposta que ele vinha buscando para sair do país. Um lampejo de esperança brotou em seu coração, novamente.
Sentindo-se um pouco mais otimista, nas noites seguintes, ele passou a vigiar e cronometrar a rotina de cada troca de turno, tudo era repetido no mesmo horário e exatamente igual à noite anterior.
Os soldados eram pontuais como os britânicos e jamais burlavam as regras, exceto aqueles que abandonavam a guarita para fugir do frio da madrugada.
Após passar um bom tempo observando, concluiu que havia ali uma única oportunidade de cruzar a fronteira, mas teria que elaborar um plano que pudesse ser executado com perfeição, pois, caso eles fossem descobertos tentando deixar o país, seriam fuzilados ou enviados a um campo de concentração, seus piores temores se concretizariam.
Após reunir as informações que julgava necessárias, todas as noites, após o jantar, ele se trancava em seu escritório para planejar os detalhes da fuga. Estava cada vez mais certo de que se agisse com muita cautela conseguiria passar a família para o território ucraniano.
Judyta desconfiava que algo estava incomodando o marido, mas não queria importuná-lo, ela tinha certeza de que no momento certo ele contaria o que ela devia saber, afinal, o relacionamento deles era baseado na confiança e na honestidade.
A rotina de Tomislaw era desgastante e ele andava se sentindo cansado, durante o dia trabalhava nas lavouras e, à noite, passava horas planejando a fuga. Já era tarde, passava das vinte e três horas, ele recostou a cabeça no encosto da cadeira, adormeceu e sonhou com um velho amigo. Casimiro era um intermediador de negócios entre a Ucrânia e a Polônia e tinha autorização para circular livremente entre os dois países. Acordou, sobressaltado, como se tivesse recebido uma intervenção divina, certamente não era por acaso que sonhara com Casimiro, ele poderia ser uma peça importante no seu quebra-cabeças.
No dia seguinte, logo pela manhã, ligou para Casimiro, e, mesmo com receio, contou sobre o seu desejo de deixar a Polônia com a família inteira.
A reação do amigo foi melhor que a esperada e Tomislaw lhe pediu que o ajudasse a entrar em contato com um casal ucraniano. Oton e Ewa estavam ajudando os poloneses que queriam deixar a Polônia, em sinal de repudia pela brutalidade com a qual eram tratados pelos nazistas.
Casimiro levou o pedido de ajuda, acompanhado de uma boa soma em dinheiro, e um bilhete escrito de próprio punho por Tomislaw. No bilhete, ele dizia que pretendia deixar o país e quando chegasse a hora esperava contar com a ajuda dos amigos. Em breve, eles seriam informados sobre o dia e o local onde deveriam aguardar pela sua família. A ajuda financeira não era necessária, Oton e Ewa estavam ajudando os poloneses sem pedir nada em troca, porém, Tomislaw sabia que aquela operação envolvia despesas e achava justo pagar por elas, afinal, dinheiro não era uma preocupação naquele momento, mas a sua família sim.
Não demorou para ele receber uma resposta. Seus amigos diziam que ele poderia ficar tranquilo, teria a ajuda que necessitava, estariam esperando do outro lado da fronteira quando ele desejasse. Sentindo-se mais confiante, Tomislaw revisou todas as informações que havia coletado durante as várias noites que rastejou até a fronteira e concluiu que o plano estava pronto, já podia compartilhá-lo com Judyta.
Era uma noite fria, a família se recolheu logo ao anoitecer, como era o costume na fazenda. Tomislaw estava tenso e não conseguiu esconder a sua preocupação, não podia imaginar qual seria a reação de Judyta ao saber do seu plano de fugir da Polônia. Comeu em silêncio e, assim que terminou o jantar, deixou a mesa e foi sentar junto à lareira da sala, enquanto esperava Judyta preparar os filhos para dormir. Ela colocou as crianças na cama, lavou os pratos e preparou um café para ela e o marido, que a observava se movimentando, graciosamente, pela cozinha. Ele admirava a mulher com quem tinha se casado e estava com receio de assustá-la mais do que ela já estava, então, com uma voz calma e suave, dirigiu-se a ela:
— Judyta, minha querida, agora que as crianças já recolheram, sente-se aqui comigo, vamos conversar.
Calada, ela olhou para o marido e ajeitou-se na poltrona em frente à lareira segurando uma xícara de café fumegante nas delicadas mãos.
Tomislaw olhava para o crepitar do fogo com um lampejo de esperança refletido em seus olhos azuis, tomou um gole do café, e continuou:
— Estou muito preocupado com as notícias da guerra, as tropas estão cada vez mais perto das nossas terras. Tenho escutado coisas horríveis que estão me deixando temeroso do que pode acontecer com a nossa família.
Ela apenas escutava e seus olhos demonstravam medo e preocupação. Tomislaw nem podia imaginar o que se passava nos pensamentos dela, naquele momento, mas, como ela nada disse, ele prosseguiu:
— Se quisermos salvar as nossas vidas, não devemos mais ficar nas nossas terras, temos que deixar a Polônia. Analisei as nossas possibilidades e acredito que dá para cruzar a fronteira em direção à Ucrânia. Será muito difícil e perigoso, isso tenho certeza, mas temos uma oportunidade e devemos nos arriscar, por nós e por nossos filhos.
Dito isso, ficou calado esperando a reação da esposa, cujo semblante transparecia uma angústia que nem mesmo a penumbra da sala conseguia esconder.
Tomislaw nunca vira a esposa tão agoniada, preocupada com a segurança deles e dos filhos.
Visivelmente nervosa, ela levantou da poltrona e começou a andar pela sala, depois de um tempo remoendo o que ouvira, disse:
— Tomislaw, entendo e compartilho das suas preocupações, mas você não acha uma grande loucura tentar fugir com cinco filhos? É muito arriscado e perigoso. Você tem noção do medo que eles vão sentir? E se os soldados nos pegarem? O que faremos com as nossas coisas? E as nossas terras?
Eram muitas as perguntas para as quais Tomislaw não tinha as respostas, ainda assim, e sem rodeios, implorando a Deus que não deixasse acontecer, com a voz embargada, disse:
— Se os soldados nos pegarem será o fim da linha, minha querida. Porém, as nossas opções são ficar e correr o risco de sermos enviados para os campos de concentração ou fugir com a esperança de salvar as nossas vidas.
— Para aonde iremos? Desculpe-me, mas já estou entrando em pânico!
O silêncio que se seguiu era sombrio e assustador.
Fugir não era uma opção segura, mas eles não podiam ficar de braços cruzados esperando o pior acontecer. A guerra era muito cruel em todos os aspectos.
Depois de um tempo, Tomislaw respirou fundo e tentando tranquilizá-la, disse:
— Quase toda a Europa e os Estados Unidos estão em guerra, então, nossas opções não são muitas. Oton e Ewa, nossos amigos, disseram-me que na américa latina tem um país chamado Brasil, que pode ser um destino seguro, dizem que é uma nação pacífica e não pretende se envolver nesta estúpida guerra, lá estaremos seguros.
Já tem alguns poloneses e ucranianos vivendo lá há bastante tempo e acredito que irão nos ajudar — pelo menos era o que ele esperava quando chegasse ao Brasil.
— Está bem, Tomislaw! Vamos planejar a nossa fuga e quando estivermos prontos prepararemos as crianças, elas devem se sentir tranquilas e seguras para o que terão de enfrentar — disse segurando, carinhosamente, as mãos frias do marido.
— Muito bem! Já tenho um plano, era nisso que eu vinha trabalhando todas as noites em meu escritório. Já entrei em contato com alguns amigos e eles vão nos ajudar. Não estamos sozinhos, Judyta!
Depois desse breve e doloroso diálogo, os dois ficaram em silêncio olhando a lenha queimar na lareira, não havia mais nada para dizer naquela noite.
Foram dormir com a cabeça cheia de pensamentos amedrontadores.
Na noite seguinte, logo após o jantar, Tomislaw chamou Judyta em seu escritório e mostrou o seu plano, deixando-a opinar sobre o que ele preparou, queria que ela se sentisse parte daquilo. Juntos, e por mais de uma dezena de vezes, revisaram todos os detalhes tentando não deixar escapar nenhum dado importante. Simularam e calcularam todos os riscos, inclusive a possibilidade de serem capturados ou mortos pelos nazistas.
Dias depois, determinados a deixar a Polônia, chamaram os filhos para contar o que estava acontecendo.
Era uma noite fria, todos se reuniram ao redor da lareira da sala para se manterem aquecidos e ouvir o que Tomislaw e Judyta tinham a dizer. Eles demonstravam aos filhos que estavam tranquilos e, com muita calma, falaram sobre a guerra e as preocupações que tinham com a proximidade dos soldados.